A locução prepositiva “por conta de” não é um novo animal na
floresta da língua. Faz alguns anos que professores de português, conselheiros
gramaticais e outros profissionais encarregados de zelar por uma versão limpa e
correta do português falado no Brasil vêm advertindo o público dos seus riscos.
Não adiantou. A novidade que se anuncia aqui é que esse modismo besta está
vencendo o jogo – e de goleada. Se “a nível de” é uma praga que, de tão
ridicularizada, entrou em declínio, “por conta de” está em alta. Quem separar
uns poucos minutos para folhear com atenção revistas e jornais, navegar na
internet ou ouvir TV e rádio – sobretudo este – encontrará uma impressionante
variedade de frases sintaticamente mancas, construções rebarbativas e outras
bobagens com “por conta de” no meio.
Com esta manchete, que deveria trazer "por causa de",
o Jornal O Globo virou notícia
Uma complicação adicional é que nem sempre essa locução
agride a gramática e o bom senso, embora o desgaste provocado pela repetição
excessiva torne cada vez mais difícil acomodá-la num texto de estilo apurado.
Como costuma ocorrer com modismos linguísticos bem-sucedidos demais, os casos
mais graves são aqueles em que a expressão fetichista, julgando-se
todo-poderosa, transborda do nicho gramatical que lhe foi reservado e passa a
atuar como predadora de outras espécies ao seu redor. Mais do que empobrecer o
vocabulário em circulação na sociedade, esse espalhamento instaura um vale-tudo
em que a muleta linguística faz o papel de curinga chamado a remendar às pressas
raciocínios esfarrapados. É o momento em que a inteligência coletiva paga a
conta.
Não se trata de exagero. Talvez os danos fossem menores,
computados apenas no placar da elegância, se os ataques se restringissem às
preposições simples e curtas – como com, contra, pore de –
que são as primeiras vítimas de “por conta de”:
● “Corintianos fazem piada por conta da derrota do
Santos” (com);
● “Atriz Y. está deprimida por conta de separação”
(com);
● “Moradores protestam por conta da situação da
estrada” (contra);
● “Escritor X. é processado por conta de plágio”
(por);
● “Morreu por conta de câncer” (de).
Nos casos acima, a locução do momento comete um crime típico
do bacharelismo brasileiro, a enrolação palavrosa – a mesma que já levou muita
gente a acreditar que soava sofisticada ao proferir tolices como “passar mal a
nível de estômago”. Diante do que vem depois, porém, isso pode ser
considerado secundário. Fortalecido pelas primeiras vitórias, “por conta de”
logo se aventura em regiões distantes de seu habitat natural, passando a
exterminar e substituir espécies linguísticas com as quais não tem a mais
pálida semelhança. É o caso da preposição “sobre”:
● “O craque analisou a equipe adversária, mas por conta da
queda do treinador preferiu não fazer comentários.”
E de repente atingimos o ponto culminante na escala da falta
de noção: “por conta de” aparece ocupando o lugar de um advérbio como “apesar”,
numa construção concessiva como esta:
● “Mesmo por conta da epidemia de dengue, as pessoas
continuam deixando recipientes com água no quintal.”
Onde estarão errando os opositores de “por conta de” para
serem ignorados de tal forma, inclusive por falantes que, para todos os
efeitos, incluem-se entre os praticantes da variedade culta da língua?
Curiosamente, seu equívoco parece residir no excesso de rigor e não na
leniência – extremos que, como bem sabe quem educa ou já educou filhos, podem
produzir resultados igualmente negativos. Ao condenar indiscriminadamente como
erro o uso dessa locução prepositiva com o sentido causal que dicionários de
qualidade como Houaiss e Aulete (embora não o Aurélio)
já reconhecem como um brasileirismo legítimo, tais críticos abrem o flanco a
uma desmoralizante acusação de ultraconservadorismo. Qualquer um que, a esta
altura dos estudos linguísticos, seja visto como defensor de um impossível
imobilismo de idiomas vivos é excluído do jogo com facilidade.
O fato é que o sentido causal de “por conta de” está além da
polêmica. Sua origem clara – e castiça – deve ser buscada em “à conta de”,
locução prepositiva à prova de controvérsia, embora pouco usada hoje. “À conta
de” quer dizer “por causa de, a pretexto de”, informa o Aurélio, dando
como exemplo uma frase de Frei Vicente do Salvador (1564-1635), autor do
clássico História do Brasil: “…à conta de defenderem a jurisdição de
el-rei, totalmente extinguiam a da Igreja”. Para transformar “à conta de” em
“por conta de”, basta uma troca de preposição tão simples quanto a que levou o para do
início desta frase a suplantar por como indicador de efeito a
atingir, numa das evoluções marcantes do português antigo para o moderno
analisadas por Said Ali em seus estudos pioneiros de gramática histórica.
No entanto, isso passa longe de esgotar a questão. Enquanto
a expressão “por conta de” puder ser trocada por “em razão de”, “em decorrência
de” ou “devido a” (que também já foi malvista, mas hoje goza de boa reputação),
estaremos diante de uma defensável escolha de estilo, ainda que irreverente se
observada por um prisma tradicional. Mas quando, numa língua de cultura como o
português, filha legítima do latim, uma peça polivalente qualquer começa a
substituir grosseiramente mecanismos programados para estabelecer entre
palavras uma malha intrincada de relações lógicas, espaciais e temporais, como
são as preposições, vemo-nos no terreno daquele círculo vicioso para o qual o
escritor inglês George Orwell chamava atenção ao afirmar que “se o pensamento
corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento”. A
epidemia do “por conta de” é um sintoma da falência educacional brasileira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário