segunda-feira, agosto 06, 2007

Duas armas no cachorro quente

A noite sempre acaba cedo nas cidades satélites. Cedo pras pessoas normais, que não trabalham como os vigias noturnos (o meu caso). Todas as noites, lá pelas 3 da manhã, nós queríamos comer alguma coisa e encontrávamos o mesmo problema: onde e o que comer? Quando a gente estava em matéria pelo Plano Piloto, nem era difícil. Pelos arredores dos Ministérios ou da Praça dos Três Poderes, sempre tem uma lanchonete ou um vendedor ambulante. Em Santa Maria, Planaltina, Sobradinho ou no Gama, a questão era um pouco mais difícil. Se a equipe estivesse em São Sebastião ou em Brazlândia, pronto! (Desculpa, Jorge... mas é verdade)! Era sinal de que teríamos que torcer pra acabar a matéria rápido pra sair logo do fim do mundo, digo, dali ou iríamos ficar com fome até o dia amanhecer e as padarias começarem a abrir.
Para a felicidade geral da equipe, na madrugada daquele sábado a gente estava em Taguatinga. A equipe do sargento Jesiel tinha prendido uns caras que usaram uma kombi pra assaltar quatro rapazes no lado sul da cidade. Os presos, depois de roubarem dinheiro, cartões de crédito e telefones celulares, ainda roubaram suas roupas. Seria cômico - se não fosse trágico - encontrar os amigos só de cueca na 21ª Delegacia.
Eu era (e sou) amiga dos policiais da guarnição e toda matéria com eles (e com todos os outros que o relacionamento de amizade existia) era divertido. A gente brincava, ria, contava piadas e na hora de ir embora ninguém queria ir. Nessa noite, como o flagrante seria demorado por ter quatro vítimas, cinco rapazes presos e um monte de objetos pra relacionar na ocorrência, nós os deixamos na DP por volta das 2 e meia da manhã. Com fome, óvio! (oh o “óvio” aqui de novo). Como era madrugada de sábado, tinha muita gente na rua saindo das boates, jovens andando em grupo e muitos deles fazendo zoeira pela cidade.
Fomos nós para o nosso ponto de encontro em Taguatinga: a Rua das Palmeiras, uma rua comprida, com um canteiro no meio, separando as duas mãos. Neste canteiro, de uma esquina à outra, vários trailers de lanches. A gente só comia num deles, sempre. O cachorro quente do Fábio era o nosso “point” quando estávamos em Tagua York, como o povo chama a cidade (Olha pra esse projeto de mapa aí embaixo.... o cachorro quente do Fábio fica em algum lugar aí).


Todo mundo já conhecia a gente. O povo do Barra, que chegava muitas vezes com o dia amanhecendo, pedia sempre o mesmo lanche, a Flávia com a doideira da Coca light quente que ninguém nunca acreditava, enfim. Nós éramos conhecidos e bem tratados naquelas bandas.
As mesas e cadeiras estavam cheias. Não demorou para que os meninos providenciassem um lugar pra nós e como eles sabiam que nós não podíamos ficar muito “expostos” por causa do equipamento que o cinegrafista carrega pra onde quer que vá, ficamos mais ou menos escondidos, mas ainda sob a vista das pessoas que estavam por ali.
Já estávamos lanchando quando dois carros pararam no estacionamento do Fábio. Num deles, uma Parati prata, dois rapazes negros, grandes, bem vestidos e uma moça lourinha. No outro, um Audi, três caras claros, menores que os negros e duas garotas. A impressão que eu tive era de que eles vinham de algum lugar juntos, apostando corrida pelo caminho. Pelo tumulto que eles causaram e pela felicidade dos negros ao chegarem, foi isso o que eu entendi. Todos saíram e se cumprimentaram. Não eram cumprimentos de pessoas que se conheciam. Outra vez essa foi a minha impressão.
Os dois grupos sentaram-se cada um numa mesa e eu nem dei mais atenção. Já passava das 3 horas da manhã.
A nossa noite de trabalho não iria muito longe mais. A essa hora pouca coisa acontece, a não ser que seja o desfecho de alguma que começou mais cedo. Afora isso, não é regra, mas dificilmente alguma coisa relevante ocorre. Mas eu nem estava pensando em parar por ali. Tinha que escrever a matéria do roubo, que estava apenas esqueletada com as sonoras e a passagem e faria isso na redação.
Ensaiávamos ir embora quando ouvi um tumulto do lado oposto ao que eu estava. Olhei e percebi que os rapazes que haviam chegado depois, do Audi e da Parati, estavam discutindo. Foi como se ouvisse o meu pai dizendo: “De madrugada na rua, se não é polícia ou o cara que ta vindo do trabalho, é o que? Gente à toa, atrás de confusão”. Sério que eu ouvi a voz dele repetindo isso, como fez a vida toda com as filhas.
Olhei para o Wagner e o Alexandro e eles entenderam que era hora de ir embora. Eles se levantaram, me esperaram juntar as minhas tralhas e fomos pro caixa pagar a conta. O caixa do Fábio ficava à frente de tudo, numa posição que eu, pagando a conta, ficava de costas para o espaço onde ficavam as mesas e cadeiras. Para que eu visse o que estava acontecendo, tinha necessariamente que me virar. Olhei pro Marquinho, o rapaz que estava no caixa essa noite e lancei a minha frase de todas as noites: “Se eu fosse pagar, quanto seria?”. Olhei pra ele e vi que o rapaz tava branco como papel. Nem demorei pra entender. Virei e olhei na direção que ele tava olhando e vi o mesmo que ele: os dois rapazes da Parati, os negros, estavam sentados, e um exibia uma pistola para os outros rapazes, os de pele clara que chegaram no Audi. Eu estava uns 20 metros distante deles. Tirei uma nota de 20, dei pro Marco e saí.
Ta pensando que eu entrei no carro e fui embora? Uma repórter policial jamais faria isso. Encostei no carro, que graças a Deus não era a Blazer identificada que a gente rodava normalmente, peguei o celular e liguei pro Jesiel, o sargento da ocorrência do roubo que eu tinha feito naquela noite.Ele atendeu e eu expliquei tudo. Ele me pediu que ficasse longe (dããã... e acreditou quando eu disse que ficaria!) e que o esperasse chegar (isso sim eu disse que faria e ele bem que poderia ter acreditado, pois isso eu faria!). Fiquei por ali e, dois minutos depois que eu desliguei o telefone... a surpresa! Não foi a viatura que chegou, mas os caras da Parati pagaram a conta e vieram pro carro deles, pra ir embora. Caraca! Eu não podia deixa-los escapar (oh o Entrei no meu carro, no banco de trás, mandei que o Alexandro os seguisse, que o Wagner filmasse tudo com a câmera portátil e liguei de novo pro Jesiel.
- Mermão, os caras tão saindo daqui. Oh, eu to indo atrás deles. Estamos saindo da avenida das Palmeiras e pegamos a principal.
- Fravinha (o Jesiel adorava me chamar assim desde que eu disse que framenguista não tinha dente), isso pode ser perigoso.
- Perigoso o que, ô framenguista? Ta doido? Eles nem me viram! O Wagner ta filmando. Oh, entramos na rua de P12 (a 12ª Delegacia de Taguatinga Centro) e eles estão indo praquela rua onde o Chaves foi preso (era uma forma de identificar a rua pro Jesiel, porque o nome dela eu não sabia messsmo, nem tinha como saber!).
- A gente ta chegando aí. Ele vai sair pra que lado, dá pra saber?
- Dá. Ele vai pegar a esquina da direita e vai sair lá no final da avenida das Palmeiras.
- Ta bom. Fica longe que eu vou abordar a Parati no fim da rua. Fica longe, hein, Fravinha?!
- Fico, claro. Pode deixar que eu fico.
Você ficou? Nem eu, claro. A Parati seguia seu caminho, com os vidros abertos, os rapazes com os braços para o lado de fora e o Wagner filmando calda movimento. Calculei mais ou menos o local onde o carro seria abordado, pedi que o Alexandro parasse o carro e troquei de lugar com o cinegrafista. Pluguei o microfone na câmera portátil e fiz a passagem da matéria em linha, narrando os acontecimentos. Eu sempre me dei bem nas disciplinas de cálculo na época de escola, mas nunca nenhum tinha sido tão preciso quanto naquele. O meu texto terminou exatamente na hora da abordagem e saímos do carro direto para acompanhar o momento da revista. Os caras estavam do lado de fora do carro, os documentos da Parati sendo verificados pelo Isaac, e o sargento olhando o interior do veículo. No compartimento atrás do banco do carona ele encontrou a pistola de calibre .380, embrulhada num pedaço de pano.

Filmamos tudo.
Uma apreensão de arma é sempre uma apreensão de arma. E você pode estar pensando: "Granaaande descoberta"... mas o fato é que quem nunca fez jornalismo policial ou nunca estudou a teoria da Segurança Pública não tem noção da importância de uma ocorrência como essa. Significa menos uma arma em mãos erradas. É, erradas sim. Porque se estivesse em mãos certas não estaria sendo exibida àquela hora da madrugada, numa lanchonete!
Dali fomos pra Delegacia “proceder no flagrante” (linguagem altamente policial, né? Eheheh). Essa era a parte chata...
O delegado de plantão era o PC. Boa gente toda vida. Pra ele nós contamos toda a história, mas só pra ele. Na ocorrência, eu não fui arrolada como testemunha. Além de ser uma encheção danada ter que ir depor em juízo na ocasião do julgamento, ficar ali esperando o término do flagrante era tudo o que eu não queria.
Nessa época, a pessoa presa com arma de fogo já assinava flagrante e ia pro presídio. O artigo 10 era recente e a partir dele, a pena prevista para o porte ilegal de arma era de 2 a 4 anos de cadeia, com a pena aumentada de um terço à metade para o caso de a arma estar com a numeração raspada ou adulterada e para o caso de arma de calibre de uso restrito, como a 9mm. Meses antes, seria diferente: eles assinariam um termo Circunstanciado e iriam pra casa no mesmo dia.
Eu, como tava fora do flagrante, terminei de fazer essa matéria com o dia nascendo. Pra ter uma idéia, fiz imagens do trailer do Fábio às 5 da manhã, e se demorasse mais um pouquinho, seria dia claro.
A matéria ficou legal, com imagens de tudo o que eu disse no texto. Digna de elogios...

2 comentários:

Anônimo disse...

Miga arrasou!!!!! Mas não vou fik enchendo sua bola não pq vai fik convencida e aí num te guento. rsss Bjo

Jussara Soares disse...

Ei, Flávia! Esses nossos amigos são nossos maiores fãs, rs. E obrigada pela visita.
Legal conhecer mais uma jornalista blogueira na região. Vou acomapanhar aqui também. Vou te linkar lá no Páginas.
Beijos!