terça-feira, agosto 28, 2007

Mistério de sonho

Foi um movimento físico inconsciente. Se tivesse alguma espécie de barulho, ela teria se preocupado em abafa-lo, para não ser percebida. Sentada sobre as pernas, repousou a prova do livro ao lado, enrijeceu os músculos do corpo inteiro e permaneceu ali, imóvel, como se assim pudesse entender o que havia acontecido. Sua atenção, que dois minutos atrás estava completamente no texto, agora estava voltada para o lado de fora do quarto no qual haviam-na hospedado.
Ela permaneceu como uma estátua por alguns longos segundos, e como o barulho ensurdecedor não parou, ela ficou preocupada. O que estaria acontecendo? Fil não falou nada sobre barulhos no meio da madrugada, nem mencionou que eles tinham companhia naquela noite. Meu Deus, Catarina agora estava com o coração sobressaltado, e se já tivessem feito algo ao seu anfitrião? Ele não podia se mover naquela cadeira de rodas e sua defesa dependeria de Justina, sua enfermeira e ajudadora pessoal.
Pensando assim, ela decidiu sair do quarto para saber de onde vinha aquele som estridente e assustador. Levantou-se com cautela da enorme cama que ficava no canto esquerdo do quarto de hóspedes da mansão e chegou até a porta em dois segundos. Antes de abrir, colou o ouvido à madeira como para saber se estava segura para sair dali. O barulho continuava, mas ela não percebeu sons que denunciassem a presença de alguém do outro lado. Abriu a porta devagar e os seus olhos demoraram a se acostumar com a escuridão total do corredor que levava à biblioteca, aos aposentos do dono da casa e da enfermeira e aos outros quartos que Catarina não tinha tido oportunidade de conhecer.
Quando sua visão conseguiu distinguir o espaço à frente, ela saiu do quarto, tendo o cuidado de deixar a porta entreaberta atrás de si. O barulho continuava e ela já nem o percebia, tão acostumados seus ouvidos estavam. Com o corpo junto à parede, ela foi andando. O coração batia forte e alto e a única coisa que a impedia e ao mundo de ouvi-lo era o som que vinha sabe Deus de onde.
Andou assim por todo o corredor que mais pareceu o trajeto de Santiago de Compostela, de tão comprido que de repente o caminho pareceu. Ela não sabia o que pensar, a única coisa que a estimulava a verificar o que estava acontecendo era a possibilidade de ser algo contra a vida ou a integridade física de Fil, o maior romancista que o mundo ocidental conhecera e com o qual há dois dias ela estava tendo a oportunidade de conviver, devido ao evento literário que a cidade francesa da Normandia estava sediando.
Ela chegou ao fim do corredor e começou a descer os degraus de mármore da escada que circulava a sala de estar, onde há menos de três horas havia dezenas de pessoas rindo, bebendo, dançando, falando sobre os novos nomes de grandes escritores que o mundo vinha conhecendo nos últimos anos e sobre a trágica morte da esposa e do filho de Fil, num acidente aéreo nove anos antes, o mesmo acidente que havia sido responsável por deixar o amável e bem humorado Filipe preso a uma cadeira de rodas, com os movimentos do corpo limitados.
Catarina descia as escadas e conforme se aproximava do primeiro pavimento, começou a reconhecer o som estridente que a havia retirado dos devaneios literários no qual estava, minutos antes. Tratava-se de um clássico, de algum autor que agora o nome insistia em fugir-lhe. O volume da música, era, porém, o que ainda a intrigava. Passava das duas horas da manhã e não lhe ocorria natural, um homem com hábitos tão refinados como o dono daquela casa, ouvir algum tipo de música numa altura ensurdecedora, àquela hora da madrugada.
Chegou ao primeiro andar da casa, com o corpo tremendo de frio, embora estivesse agasalhada a contento, afinal, sendo ela do Rio de Janeiro, qualquer temperatura abaixo de 15 graus doía-lhe os ossos. Talvez nem fosse de frio, mas de medo. O ar parecia não circular, e mesmo assim o ambiente parecia gélido e se tivesse que imaginar quantos graus estaria marcando o termômetro, Catarina arriscaria algo em torno da temperatura desértica de madrugada.
Ainda devagar, mais por medo que por cautela, ela andou em direção ao escritório do escritor. Dois dias antes, quando ela chegou à mansão, aquele andar da casa lhe fora apresentado e sua admiração pessoal por Fil a fez memorizar o caminho exato entre os confortáveis sofás negros da sala de estar e o escritório, local onde seu exemplo de bela escrita encontrava-se com os maiores editores, de todos os países do mundo. Não foi difícil refazer mentalmente o trajeto. O corpo obedeceu aos comandos do cérebro da moça, que agora estavam aos turbilhões.
Chegou à porta e como havia feito antes de sair do quarto, colou o ouvido para tentar entender, antes de bater ou de entrar, o que estava acontecendo lá dentro. Não reconheceu ruídos que pudessem fazê-la perceber a presença de alguém. Levou a mão à pequena maçaneta dourada e forçou. Estava fechada. Não era possível estar fechada. O som vinha dali e ela não tinha dúvidas quanto a isso. Tentou novamente. Fechada. A chave não estava na porta.
Agora a preocupação estava se transformando em desespero. O que poderia estar acontecendo? Ela aproximou mais seu corpo da porta, como se pudesse atravessá-la ou entender o porquê da porta estar trancada, e assim estava quando atenção foi trazida a uma voz feminina chamando-a pelo nome. Ela ficou em silêncio, novamente parada para não ser percebida. Ela permaneceria assim até que o dia amanhecesse, caso fosse necessário, mas instantes depois ela foi tocada. Pôde sentir dedos firmes tocando-a na altura dos ombros. Olhou para trás e não viu ninguém, mas a voz continuava a chamá-la pelo nome e os dedos a tocarem-na, com insistência. E a voz estava ficando cada vez mais próxima e os dedos cada vez mais fortes a chamarem-na. Sentiu uma forte dor de cabeça, causada por algum objeto que parecia ter caído de algum lugar.
Olhou em redor e tudo fez sentido então. Abriu os olhos ainda sonolentos e o rosto da mãe se desenhou ao seu lado. Ela sorria, como sempre fazia quando vinha acorda-la. Voltou rapidamente à vida real, sua vida de adolescente de 16 anos, aluna do curso Normal da escola do bairro. Sua vida que se resumia apenas nisso, mas ela se conhecia e sabia que tudo iria mudar. Iria sim. Um dia ela conseguiria terminar um sonho sem que a mãe a interrompesse e aí teria uma história completa! Dessas que viram best sellers ou novela de TV!

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