sexta-feira, agosto 01, 2008

Assistência Social pública?*

*Flávia Anastacio

De agora até o fim do ano, todo mundo vai ouvir falar de mais umas três ou quatro campanhas em prol de pessoas. Crianças carentes, pessoas com necessidades especiais e algumas outras possíveis categoria de ajudáveis. As mensagens são, basicamente, as mesmas: seguidas de algum 0500 - que já foi 0300, 0900 - buscam doações de quantias que serão destinadas a instituições fundadas para melhorar a vida de alguém por aí.
A cada ano recordes são quebrados. Os números de doadores e de quantias arrecadadas são consideravelmente acrescidos em relação a anos anteriores com o passar das edições. De certo modo isso é louvável. Não por clichês do tipo: “brasileiro é um povo solidário”, mas por realidades revoltantes, que estimulam pessoas de diferentes classes sociais a uma mobilização pouco vista.
Milhões doados, creditados diretamente em contas vinculadas a entidades sérias e investidos em projetos sociais em todo o Brasil. Até aí tudo certo. Certo? Sim. Pelo menos é tudo o que a gente ouve falar o ano inteiro. “O dinheiro que você doa, aplicado em benfeitorias”. E o fato é que eu até conheço pessoas que vestem a camisa – literalmente também, aliás. São pessoas que precisavam – e mereciam – ser beneficiadas e, ainda assim, se dispõem a deixar seus afazeres e suas vidas para ‘buscar um futuro melhor, com um país mais digno e realidades menos sofridas’.
A questão, nisso tudo, é apenas uma: até que ponto vale a pena o esforço? Pode parecer uma pergunta retórica ou uma questão que nem leve alguém a se dar o benefício da dúvida, mas a meu ver é completamente pertinente.
Escolas com voluntários ensinando meninas a bordar e meninos a jogar bola, professores fazendo extra e ensinando crianças a somar e subtrair, atletas tirando uma hora do seu dia para ensinar uma turma a nadar. Tem juízes ensinando cidadania e respeito ao próximo. Bailarinos ensaiando o Lago dos Cisnes na favela, padres catequizando – sim, isso também faz parte – e mais um monte de gente, ensinando um monte de outras coisas.
Enquanto bons corações ajudam a desconhecidos nascidos sem sorte, adolescentes que não vão à escola enveredam pelo caminho do tráfico e vendem entorpecentes a meninos e meninas que passeiam pela praia. Enquanto crianças aprendem a pintar e bordar, moços são assassinados e viram estatísticas num país onde a morte precoce é assunto simples e os dados nem assustam mais.
Enquanto adolescentes chegam à nona série com louvor em cidades onde programas sociais privados colocam merenda de qualidade à mesa dos refeitórios, meninas vendem o corpo na busca por pão, outras são obrigadas a trabalhar em carvoarias e meninos em boates são assassinados por policiais seguranças desavisados.
Há, ainda, acontecimentos inúmeros outros, ignorados todos os dias, que da mesma forma causam indignação, revolta e podem ajudar a questionar sobre até que ponto esforços financeiros – e pessoais, como tempo, carinho e atenção – não deixam de ser auxílio para se transformarem em estagnação de quem obrigatoriamente tinha que fazê-los.
Enquanto eu me dedico a expor idéias contrárias a tudo o que todo mundo acha bonito, filantropo, social e de bom coração, a família de um conhecido – amigo, filho, namorado, aluno, funcionário, gente como a gente – está brigando na justiça para que o rapaz, de 19 anos, tenha direito a uma série de exames e tratamento para uma leucemia recém descoberta, pelo Sistema Único de Saúde. Sim. Você disca 0500 e doa 5, 7, 9 reais a entidades privadas que pregam bem-estar da população carente. Todos os dias, milhares de reais são creditados aos cofres públicos por meio de contribuição – que começou como imposto, virou contribuição e agora estão se decidindo sobre o que ele vai ser - que teoricamente deveriam virar benefício de Saúde para a população.
É. Deveriam. Mas viram? Não no meu estado. No meu estado, famílias brigam por exames que elas mesmas pagam para ter, jovens são assassinados em boates, meninas são esquartejadas. Mas essa é só a parte ruim. A parte boa é que aqui, também no meu estado, políticos posam sorrindo para fotos de placas e faixas, felizes, em ano de eleição. No meu estado, as arrecadações de benefícios feitos aos ‘zero quinhentos’ por aí somam as maiores quantias do país. É... nós, cariocas e fluminenses, temos os maiores corações do Brasil. Somos os responsáveis por quase 30% de tudo o que essas campanhas pró futuro dos descamisados arrecadam todos os anos.
E mesmo assim tudo parece imóvel. Lei da Inércia? Talvez. “Talvez”, porque pode ser que em mais trinta anos de Crianças Esperanças a coisa se transforme na Lei da Mudança. Mas na lei que tem que ser cumprida. Pra você, pra mim e pra família do Felipe, que por enquanto está sofrendo só a busca por um transplante de medula. O ‘só’ está aqui porque muitos exames ainda têm que ser pagos até que ele saia curado do hospital.

Texto publicado originalmente na coluna EM OFF, da Revista Médio Paraíba

Um comentário:

Anônimo disse...

Essa é a Flávia que eu conheço...