terça-feira, setembro 16, 2008

Espetáculo visto dos Arcos: sobrados e gente


BELACAP – capital da beleza. Aqui os três poderes são, pela ordem, o mar, o sol e a alegria. Vivemos na mais linda paisagem deste planeta e sabemos gozar a vida. As coisas que tornariam insuportável a existência para qualquer outro povo, para nós são coisas que a gente ri. Falta água? Rimos. As ruas estão esburacadas? Inventamos divertidas anedotas sobre isso. Não há nada capaz de quebrar o nosso otimismo, e é por isso que, atualmente, não há neste país outra comunidade mais capacitada do que nós a construir a mais agradável cidade do mundo, uma cidade à altura do seu panorama.
Há coisas que só se podem fazer em Santa Tereza. Por exemplo: nada. Quem vai a Copacabana vai ver o mar e outras coisas. Mas em Santa Tereza há ladeiras para a gente andar em suas calçadas. A pessoa anda entre casas muito limpas com trepadeira, entre crianças que brincam passando por varandas onde austeras senhoras de olhos azuis se balançam em cadeiras de balanço, fazendo tricô. Aqui se produzem o mais puro ar e o silêncio mais reconfortante do Estado da Guanabara. O clima é ligeiramente europeu. As casas são de estilo europeu ou colonial. E surgem castelos no meio de arbustos verde-escuros.
Há também densos bosques cobrindo as encostas que uma estrada de pedra circunda. Essa estrada de pedra circunda. Essa estrada juncada de folhas secas, e protegida por pequenos muros ou grandes paredes unidas e cobertas de ervas, oferece trechos solitários, sob uma árvore, onde a pessoa pode ficar em silêncio – onde o silêncio, repetimos, constitui uma atração turística. Descortina-se a cidade aos nossos pés. Cordilheiras de arranha-céus; e depois o mar, essa mancha aprisionada na baía verde.
Há passeios ainda não catalogados e maravilhosos. Por exemplos, em alguns trechos o muro tem falhas, e entrando por essas falhas a pessoa encontra caminhos naturais, inclinados, entre e ao redor de árvores. É só descer. A água também desce, em nascentes que escorregam sobre pedras polidas. O ar está perfumado pelas folhas. Pássaros cantam. Você sempre desce. Há choupanas abandonadas que, à primeira vista, parecem requintes providenciados pelas autoridades de uma supercivilização turística. Meia hora de viagem, cheia de incidentes fornecidos pela natureza, e chegamos a Laranjeiras, no plano, como Tereza devem ser recomendados principalmente aos jovens namorados, que se sentirão como João e Maria perdidos no bosque – só que Laranjeiras é o desfecho fatal da aventura, não correndo riscos.
No alto de Santa Teresa está o Silvestre – mas isto é outra história. Fiquemos por aqui. Terminamos lembrando como se deu o nome a este morro, preferido pelos europeus radicados no Rio, por motivos óbvios. Houve outrora uma família ilustre e, nessa família, duas irmãs, Jacinta e Francisca, resolveram afastar-se do mundo profano. Ao pé do morro, numa chácara, ergueram um templo. Mais tarde, esse templo se transformou no primeiro convento das carmelitas descalças.
A natureza, aqui, é muito exuberante para oferecer um ambiente claustral. Mas, em todo caso, o silêncio reina, muito embora a ventania agite constantemente a copa das árvores, e prestando atenção você perceberá uma plenitude, uma alegria severa, como se por aqui estivessem ainda, transmudadas em panorama, essas duas almas tão belas que renunciaram, aos prazeres do pecado.
Santa Teresa, senhor turista, é um estado da alma. Isso começa logo na estação terminal dos bondes. São bondes limpos, sempre novinhos em folha, abertos ao vento. Vão subindo a ladeira, subindo, e então começa o Viaduto dos Arcos. Se está anoitecendo, não há espetáculo igual. O crepúsculo derrama seu vinho no bonde, incluindo o Sr. Turista. E os sobrados antigos da Lapa, vistos de cima, mostram seus telhados fuliginosos, suas áreas internas com muros de azulejos, suas varandinhas de madeira que o tempo, e o vento, roem docemente. Revela-se a intimidade de pessoas que, vistas de cima desse bonde que navega no abismo, parecem pessoas nossas, da nossa família, pessoas que não vemos há muito tempo.
Como são lindas as pessoas surpreendidas em suas atividades cotidianas, quando não sabem que estão sendo observadas! Veja: a moça de tranças está pondo os pratos na mesa: como é graciosa! E aquela senhora de aparência rude estendendo uma toalha azul no arame, no pátio. E, numa janela do terceiro andar, cujo interior já acendeu uma lâmpada (no entanto, há claridade bastante), aparece um senhor idoso, magro, meio calvo, trajando um pijama e olha para o céu para ver se vai chover amanhã. E lá vai o bonde, cautelosamente entre essas fachadas patinadas, acima e diante da vida de todos os dias. Um gato caminha num oitão bem perto do abismo de três andares. Aqui ainda se encontram clarabóias, e sob os vidros, certamente, haverá uma anciã que já trabalhou muito, viveu muitíssimos anos e merece, ao crepúsculo, tomar sopa de legumes em sua cama. E meninas lindas, sr. Turista, nascidas na pobreza honrada, crescem por ali, felizes, mas sem prestar atenção neste fato, e sem supor que nós podemos vê-las do alto desse viaduto.

Jornal do Brasil, 20.06.1960

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