Tempo curto
Maria pegou uma velha fotografia de sua mãe em seu baú já empoeirado pelo tempo. Muitos álbuns e fotografias misturadas e fora de ordem cronológica. Crianças misturadas com imagens de paisagens rosadas danificadas pelo oxigênio. Olhava as fotos como se estivesse revivendo cada instante. O passado é sempre melhor. “Já passou. Não tem mais jeito”, pensava Maria.
Lembrou-se dos tempos de escola, das amigas e do primeiro namorado. Dos bailes, do apertado cinema de sua cidade e de seus pais, tão presentes em sua vida. A fotografia de Dona Ivone mostrava uma senhora bonita e bem maquiada. A tonalidade sépia da imagem denunciava o quanto era antigo. Tinha os olhos da mãe. Olhos sábios e atentos. Olhar honesto e profundo.
Maria sentia a determinação de sua mãe só de olhar para o papel. A procura pelo instantâneo tinha um motivo: Maria queria pintar o rosto da mãe em uma tela. Testar seu novo hobby. Modelo escolhido, tintas, ambiente, tela grande, música instrumental ao fundo e um incenso para acompanhar. Maria começa desenhando os contornos do rosto. Depois os cabelos, os olhos, o nariz e a boca. Por um instante pensa estar fazendo seu auto-retrato. Para e olha o esboço. Não gosta. Apaga tudo e começa novamente. Logo as obrigações do lar a convocam. O filho está com fome e o marido vai chegar do trabalho.
Guarda a tela com um outro não muito diferente esboço e vai cuidar dos afazeres domésticos. Como o presente era para o aniversário de 70 anos de sua mãe em outubro e ainda estava em maio, julgou não ser necessário tanta pressa em terminá-lo. A vida agitada de dona de casa aliada aos problemas do filho na escola, as contas que sempre chegam todos os meses, os cortes nos gastos familiares fizeram com que Maria se envolvesse demais com problemas rotineiros deixando suas vontades e sonhos em segundo plano. O quadro de Dona Ivone recebia algumas pinceladas de vez em quando. Maria resolveu deixar pra lá. Vinte anos depois Maria se encontra à beira de seus 60 anos. Incumbida de mostrar fotos antigas para sua nora, ela vai ao seu quartinho da bagunça onde ficam guardados seus arquivos de fotografias. Ao ver a tela inacabada de sua mãe, chora aos prantos. “Como pude ser tão negligente? E agora? Minha mãe nem está mais aqui conosco. Quanto tempo perdido e nem ao menos consegui acabar uma homenagem à minha querida mãe”. Ainda se debulhando em lágrimas pegou seu antigo pincel, endurecido pelo tempo, e recomeçou seu trabalho que nunca deveria ter sido interrompido. Maria agora sabe do valor de uma amizade. De uma família. Não só pela tela, mas pelo significado disso tudo. A duração de nossas vidas é determinada pelo nosso passado e nossas atitudes. Cada abraço e cada olhar trocado com nossos filhos, esposas, maridos, irmãos e pais são únicos e eternos.
São inesquecíveis.
É o que fica.
* Publicado por Wallace Feitosa, originalmente em Mimeographo
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Quem somos?
Acabou.
A Semana da Mulher passou e voltamos todas e todos à realidade nua e crua. Nada de beijinhos, abracinhos, botões de rosas vermelhas e felicitações nos ambientes de trabalho e nas ruas. Quem ou quantos vão se lembrar ou ao menos pensar no verdadeiro motivo de 'comemorarmos' o Dia Internacional da Mulher? Alguém se habilita? Pois é...
Nesse mesmo dia, em 2006, tive que explicar a uma mulher porque essa ‘comemoração’ existe. E essa mulher já tinha na época mais de 30 anos e não era inculta, muito menos ignorante. Bacharel em Direito, não exercia a profissão, mas era ativa no mercado de trabalho de São Paulo. Só que na ocasião não tinha sequer idéia do por que desse nosso dia.
8 de março de 1857. Operárias de uma fábrica de tecidos, em Nova Iorque, fazem uma grande greve. Elas ocupam a fábrica e reivindicam melhores condições de trabalho, equiparação de salários com os homens e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação é reprimida com total violência. Elas são trancadas dentro da fábrica, que é incendiada. Cerca de 130 tecelãs morrem carbonizadas, num ato totalmente desumano.
Sinceramente, desde que conheci essa história passei a detestar receber rosas no Dia Internacional da Mulher. Ganhar flores, pra mim, é um presente ligado a romantismo afetivo, ou pior, a um pedido de desculpas descarado de um homem que traiu sua mulher (conheci vários confessos). Também não gosto das dezenas de felicitações que me chegam por e-mail. São todas muito parecidas: “somos lindas, maravilhosas, gostosas, cheirosas, perfeitas e necessárias” ou “temos um dia só pra gente, então vamos comemorar!!!!!!!”.
Enquanto isso, num escritório muito próximo daqui, uma mulher cabisbaixa, encolhida como um feto, tenta dar rumo a sua vida diante de uma advogada de um projeto social. Ela foi violentada durante toda a vida pelo pai e pelos irmãos. E o marido, segundo ela, nem é tão mau: “Ele me bate, sim, mas só um pouquinho...” Essa mulher, muito provavelmente, recebeu uma rosa de presente quando chegou ao trabalho de manhã. E o que é feito por mulheres assim? Porque ela não considera tão mau o homem que 'bate pouquinho'?Porque ainda somos hipócritas. Porque ainda preferimos fechar os olhos ante o desconforto da realidade. Como aquela deputada que entra num evento na semana da mulher e diante de um auditório lotado de mulheres que realmente fazem algo de útil pela questão do gênero despeja um discurso pra lá de antigo, tipo 'a luta continua', e em seguida sai de fininho. Gostaria de saber o que ela ou qualquer outra faz de efetivo pelas milhares de mulheres que ainda sofrem muito nesta sociedade de cultura machista. Ou somente providenciam rosas para parabenizá-las e enaltecer sua feminilidade.O Dia Internacional da Mulher é um dia de reflexão, de pensarmos, nós mulheres, no que podemos fazer para melhorar nossas vidas e das nossas semelhantes. Dia de sair do conforto de nossos lares felizes para levar um abraço, um afago, um par de ouvidos àquelas que padecem diariamente de horrores que nem podemos imaginar. Dia de arregaçar as mangas e de ter boas idéias, propor mudanças, programas, projetos. De mostrar ao mundo que somos mulheres sim, com muito orgulho, não apenas para o deleite dos homens, porque somos cheirosas e gostosas, mas para viver com o mínimo de dignidade que qualquer ser vivo merece e tem direito.
* Publicado originalmente em Sentidos ~ Giovana Damaceno
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