sexta-feira, abril 29, 2011

A vendedora da rodoviária

Todo trabalho é trabalho. É digno.
Isso é o que todo mundo diz. E eu concordo, pelo menos em parte.
Eu ouvi muitas vezes, de traficante, frases do tipo: "não consegui emprego, sou pai de família, precisava sustentar meu filho". E, se for ler ao pé da letra, ele tem razão. Obviamente não é razão para que o cara decida ser traficante ou ladrão, mas que ele tem razão, tem. Não tem emprego mesmo!
O cara é pai de família e ta trabalhando, suando a camisa. Não da forma correta, mas ta.
Como quando matam um cara que não tem passagem pela polícia, durante um assalto, por exemplo, uma das primeiras características que os repórteres policiais fazem questão de colocar na boca de alguma testemunha é que a vítima era pai de família ou que ele era trabalhador.
Gente.... traficante também é pai de família! Tem mulher, filho e casa pra sustentar.
Traficante também é trabalhador! Ta vendendo droga pra ganhar dinheiro, ou seja, ta trabalhando.
Isso me deixa indignada! Tão indignada quanto eu fico sempre que tomo um ônibus na rodoviária de Barra Mansa.
Não tenho dúvida de que os meus três leitores estão se perguntando o que teria a ver a "dignidade" dos traficantes trabalhadores e pais de família com alguém na rodoviária de Barra Mansa.
E eu explico.
Como em quase todos os locais com um fluxo grande de pessoas, na rodoviária há pessoas vendendo coisas. Sim, durante o tempo pouco em que, pelo menos eu, fico por ali, tem sempre uma senhora, um senhor ou gente de qualquer idade, vendendo coisas. São bolsas de viagem, biscoitos, água, refrigerante, paçoca, jujuba e mais uma infinidade de produtos.
É trabalho digno, como o de qualquer pessoa. E é baseada então, na atitude de uma dessas vendedoras das várias que circulam por ali, que eu conclui que os traficantes podem, sim, julgarem-se donos de "trabalhos dignos".
E eu explico de novo:
A tal, que vende doces lá na rodoviária, aborda a primeira pessoa: "quer? 3 por 1 real". A pessoa não compra. A segunda também não. A terceira, não. A quarta, também não. A quinta sou eu (que posso também ter sido a primeira, a segunda, a terceira ou qualquer outra). "Não, obrigada". Aí ela se irrita (no caso de eu ser a quinta, acabo ouvindo muito de perto o que ela diz. Se eu tivesse sido a primeira ou a segunda, por certo não ouviria tão claramente): "Ta bom, então vou ter que achar dinheiro no chão, porque ninguém quer comprar!".
E sai bufando e chutando pedra. Quando há pedra por perto, porque quando não há, ela sai esmurrando a primeira parede que vê pela frente.
Não vi isso acontecer uma, duas ou três vezes. Já vi isso acontecer incontáveis vezes. Mas muitas vezes mesmo. E cada reação dela é de um jeito, sendo que todas são da mesma natureza. Eu já a ouvi perguntando (ao vento, não a uma pessoa que tivesse se negado a comprar os produtos dela) se "por acaso vocês querem que eu roube? Se não querem, então comprem de mim".
Como assim?
Outra vez ela disse: "Então compra daquela velha safada ali, o dela é mais caro".
É, é inacreditável.
Ela é carrancuda, grossa, ignorante e te xinga porque você não quer comprar três paçocas por 1 real.
Às vezes ela fica tão brava, que eu me preparo pra defender uma velhinha que se nega a comprar e ouve impropérios inaceitáveis.
E todos os dias ela está lá. Do mesmo jeito. Cabelos longos, magrinha, pele clara e uma cara de maldade que dá até medo. Muito mais em quem já a ouviu brigar com as pessoas que se recusaram a comprar as paçocas ou qualquer outra coisa que ela carrega naquela cestinha lá.
Aí volto ao início, aos papos dos traficantes pais de família e trabalhadores.
Dignidade não está no trabalho. Está na pessoa.
Não está no que ela faz. Está no que ela é.
E traficantes podem ser dignos, ou não. O trabalho deles é que não é.
A mulher da rodoviária tem um trabalho digno. E de que adianta? Ela é digna?
E dignidade? O que é? É ter um emprego, respeitar seu chefe ou cliente, manter respeito no trabalho, pagar as contas ao final do mês? Levar comida pra esposa e filhos?
Isso o traficante faz. A mulher da rodoviária também.
E aí?
O trabalho dignifica? Dizem que sim.
Mas dignifica quem? E como?
Eu não entendo disso não. Só entendo que traficante pode sim, ser pai de família, outro traficante pode, com todo direito se julgar um trabalhador (digno, até... dependendo da ousadia dele) e a mulher da rodoviária que xinga quem não quer comprar doces dela, acha que ta trabalhando e, só por isso, está dignificada.
Afinal de contas, é isso o que dizem.

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