quarta-feira, junho 29, 2022

Meu pai

Sabe quando há tanto o que dizer, que faltam palavras? Às vezes eu me sinto assim quando estou fazendo uma oração de agradecimento a Deus. É, é sério. Eu sou tão grata pelo que Deus é na minha vida, que às vezes eu não sei o que dizer. E graças a Deus que Ele conhece nossos corações e sabe exatamente o que a gente sente em todo momento. Dessa forma, a gente não precisa se desdobrar pra encontrar as palavras.

E neste momento, é mais ou menos assim que eu me sinto. Não porque ficou algo a ser dito, mas porque não sei como dizer. Meu pai foi uma das pessoas mais importantes da minha vida durante quase toda a minha vida. Ele era meu pastor, meu guia espiritual durante praticamente toda a minha fase jovem e adulta. E falar dele, enquanto ainda dói tanto sua partida, é difícil. Eu passei dias e dias ensaiando o começo deste texto e quando comecei a escrever, todos os ensaios desapareceram da minha mente. Simplesmente não há palavras.

Eu só consigo me lembrar de todas as vezes em que, quando eu era criança, nos sentávamos todos  à volta da mesa da sala, naquela primeira casa que moramos, e enquanto comíamos, ele falava sobre o Apóstolo Paulo, o homem que – apesar de ele nunca ter dito – eu acredito fosse o exemplo de “homem de Deus” que ele tinha. Ele falava das cartas de Paulo, dos ensinamentos de Paulo, do exemplo da conversão de Paulo, da sabedoria que Deus deu a Paulo, das coisas que Paulo fez que testificavam a transformação da vida dele. Certamente, meu pai o amava e amava sua história. Eu me lembro claramente dele falando de Paulo caindo cego, depois de ouvir a voz de Cristo dizendo “Paulo, por que me persegues?”. Provavelmente, meu pai falou de outros homens da bíblia com a gente, mas eu só consigo me lembrar de Paulo. Talvez essa lembrança alimente minha admiração por Paulo, pra mim um dos maiores homens de Deus na terra.

Mas lembro também do bom humor do meu pai. Eu até me considero uma pessoa bem humorada, mas não tanto quanto ele. Ele era sim, um tanto ranzinza, muitas vezes chato até. Mas na maior parte do tempo, especialmente se estivéssemos em família, com tios e tias, primos, ele tinha um bom humor incrível e fazia piada de tudo. Entrávamos madrugada nas reuniões familiares, dando gargalhadas das coisas que ele falava. Eu era adolescente e amava esses momentos. Havia outros tios e primos que embarcavam nas piadas, nas histórias e isso criou em mim memórias absurdamente divertidas. Tão, que eu ainda consigo rir me lembrando do tanto que nós ríamos quando estávamos todos juntos.

Lembro com clareza das pregações na igreja, ensinando. Ele sempre dizia que não era pregador, que só sabia ensinar. “Eu só sei falar sobre o que Deus ensinou e isso provavelmente vai incomodar, se você veio aqui pra se sentir bem”, ele dizia. E ensinava sobre obediência (ele colocava as mãos na parede, como se fosse um quadro e dizia: o alfabeto do mundo é abcd e o alfabeto do cristão é obdc, obedecê, nunca me esqueci disso e trouxe essa verdade pra minha vida), ensinava sobre entrega total a Deus, sobre vida com propósitos, ensinava que a morte era a volta ao lar, ensinava que a “fé é o ponto vital” e que nada é mais importante do que estarmos no centro da vontade de Deus.

Aliás, ele dizia que sabia ensinar sobre Deus sem rodeios e sabia curar em nome de Jesus. E isso ele fazia mesmo. Talvez os meus três leitores não o tenham conhecido ao ponto de saberem que ele tinha o dom da cura, mas eu poderia passar dias e dias aqui, relatando os casos que eu vi, as curas que eu presenciei, as vidas cujas transformações eu acompanhei de perto, e outras nem de tão perto assim. Poderia citar nomes, casos, épocas, testemunhos inteiros. Vi pessoas serem libertas através das orações dele, vi pessoas incrédulas sendo salvas através da vida dele, sempre em nome de Jesus. Ele dizia: fulano ta doente? Eu vou lá em nome de Jesus e curo. Ele tinha certeza de que a pessoa seria curada. E em nome de Jesus, ele curava mesmo. Não tinha barreiras pra fé dele. Posso dizer que Deus curou algumas centenas de pessoas através das orações do  meu pai. E ele não se gloriava disso. Ele era canal de bênçãos, ele era instrumento nas mãos de Deus. Na vida dele não havia lugar para a soberba. Ele não se sentia vaidoso por ser procurado por pessoas a qualquer hora do dia ou da noite, precisando das orações dele. E ele jamais se negou a orar. Impunha as mãos sobre a cabeça das pessoas, com a mesma dedicação e fé, mesmo estando cansado, com fome, sem dormir ou tendo acabado de ser despertado no meio da noite.

Uma vez, durante um culto de domingo, uma mulher grávida começou a passar mal e alguém fez sinal para que ele orasse por ela. Ele orou e ela continuou com dores. Ele pediu que ela dissesse onde doía e ela explicou. “Então, minha filha, vai pra maternidade, porque o seu bebê está nascendo e não há cura pra isso”. E era mesmo, a mulher estava entrando em trabalho de parto e não tinha se dado conta. Houve muita risada e ele contou esse caso por algumas vezes, quando queria dizer que nem tudo podia ser “resolvido” com oração de libertação/cura.

Ele era homem, pecador, como eu sou, como todos somos. Este texto não é para transformá-lo em um santo, longe disso. Este texto é pra eu me lembrar um pouco do que vivemos, pra eu falar dele aos meus três leitores, que provavelmente não o conheceram. Este texto é para testemunho do que ele era e do que ele fez. Em alguns momentos, ele fez pouco pela família, em detrimento da igreja. Quase morreu pela igreja, literalmente. Algumas pessoas podem se lembrar do infarto dele em 2007. Ele foi ao hospital depois de um fim de semana de muitas decepções com a liderança que o acompanhava na região que ele liderava. A ida ao hospital com fortes dores no peito resultou em uma internação. Os exames indicavam “apenas” uma crise de angina. Ainda internado em observação, ele recebeu uma visita que para nós, familiares, não significava nada. Mas foi durante essa visita que ele infartou, de fato. Dentro do hospital, sob cuidados médicos, medicado. Nós só soubemos depois, quando os exames indicaram o infarto e um dos cardiologistas que o acompanhavam acreditou que pudesse ter ligação com algo que ele tenha vivido ali mesmo no hospital. Só depois de alguns meses, que ele já tinha feito a cirurgia no coração, foi que nos lembramos e entendemos que aquela visita, no hospital, tinha sido a causa do infarto. Se a visita tivesse sido em casa, provavelmente ele teria  morrido 15 anos antes.

Quando a Mônica ficou doente, eu descobri um pai que eu não conhecia. Ele sempre foi um homem de fé e eu nunca tinha visto ele chorar tanto, tão copiosamente, quanto vi algumas vezes naqueles seis meses. E eu não acreditava no que, ao meu ver, era “falta de fé”. Eu tinha certeza de que a Mônica seria curada. Nós orávamos todos os dias, ele dizia que só pararia de orar quando ela fosse curada. E como eu passei a vida inteira vendo pessoas sendo curadas através das orações dele, não tinha dúvidas de que a doença e cura da Mônica eram pra testemunho. Meu pai nunca me disse, mas eu acredito que ele sabia, desde algum momento da doença da Mônica, que ela não teria o corpo curado, mas que a libertação viria a ela de outra forma, como veio. Lembro que eu estava sentada no quarto dele depois de um momento de oração – minha mãe já estava com a Mônica internada em São Paulo – e eu perguntei: A doença dela é pra morte? Ele me respondeu serenamente: A doença dela é pra vida eterna. “Mas por quê?”, eu insisti, porque queria ouvir dele que Deus a curaria, era como se eu precisasse que ele mesmo se ouvisse falando. E ele sabiamente respondeu: “Favinha, a morte entrou no mundo pelo pecado do homem. O plano original de Deus não era que morrêssemos. E o fato é que não importa como a morte vem, ela é o veículo que nos leva de volta ao lar. O nosso corpo adoece por muitas razões, mas isso não importa. A morte, quem nos impôs foi o pecado, mas nós, salvos, não precisamos nos preocupar com isso, com como morremos. Nós partimos salvos”. Nunca esqueci essas palavras e entendi que a doença da Mônica não era pra salvação terrena dela. No dia seguinte a essa conversa, ele foi pra SP encontrar minha mãe e alguns dias depois, a Mônica faleceu.

Eu vi no rosto dele o sofrimento, no choro, nas palavras. Vi nas atitudes. Vi nas orações buscando consolo. Ouvi o sofrimento na voz dele por muitas semanas depois, nas pregações na igreja. E vi o Espírito Santo consolando também. Vi ele sendo carregado por Deus. Vi Deus se manifestando em pequenas coisas, trazendo vida de novo à vida dele. Vi muita coisa acontecer, mas algumas eu não vi, pra glória de Deus: não vi blasfêmia, não vi decepção com Deus, não vi meu pai questionar Deus, não vi negação, não o vi proferir uma única palavra que pudesse colocar em dúvida a fé dele, mesmo depois de perder uma filha de 38 anos, cheia de vida, por uma doença que a fez sofrer por exatos seis meses. Não vi nada na conduta dele que pudesse colocar em dúvida a posição de homem de Deus que ele ocupava desde que eu me lembrava.

Dois anos depois da morte da Mônica, Deus nos deu a Aurora. O nome dela foi escolhido pelo Devan, muito antes de nos casarmos, mas foi inspirado por Deus, porque Aurora foi um renascimento do meu pai e da minha mãe também, que em algum momento vai ter forças pra ler este texto até o fim (se é que eu vou conseguir terminá-lo). Vi uma alegria nele que há muito não havia. Os olhos dele brilhavam cada vez que ele via a Aurora. E quando viemos embora, ele não quis se despedir. Deu boa noite no dia anterior e saiu bem cedinho no dia da nossa viagem, sem falar nada. Passei alguns meses, antes da nossa decisão de sairmos do Brasil, ouvindo ele dizer que só o veríamos por chamadas de vídeo ou quando voltássemos, porque ele era velho demais pra ficar implorando por um visto que o permitisse entrar nos Estados Unidos. E ele se manteve assim por alguns meses. Mas aí, era Aurora e a Rachel, filhinha da Aline, que ele só conhecia por chamadas de vídeo. Saímos do Brasil em novembro de 2016. Minha mãe nos visitou várias vezes até agosto de 2018. Eu estava grávida da Cathe e ele decidiu por si mesmo tentar o visto “pra ver as netas pessoalmente antes de morrer”. Nós oramos para que Deus direcionasse e ele conseguisse o direito de vir nos ver. E Deus proveu. Catherine nasceu no dia 3 de dezembro e no dia 27 ele chegou. Ficou conosco dois meses. Que alegria!

No ano passado, durante a pandemia, enquanto nenhum não-cidadão podia entrar nos Estados Unidos, Deus moveu e o governo concedeu uma autorização especial, e eles puderam entrar no país. Ele ficou conosco por dois meses e precisou voltar. A intenção inicial dele era ficar por seis meses, mas não foi possível. Ele voltou sozinho. Minha mãe voltou 4 meses depois, em março deste ano.

E as coisas foram acontecendo. Ele estava ajeitando tudo e planejando voltar pra cá agora, no nosso verão, pra ficar por aqui seis meses, curtindo as meninas. Dizia que queria uma casa dele e única exigência que fazia pra ficar aqui era que almoçássemos juntos todos os domingos. Nós precisamos prometer que assim seria.

Pois bem, no dia 21 de abril, Aline descobriu que esperava um menino. Contou a novidade à minha mãe e ela, por telefone, contou a ele, que estava em Morro Azul. Meia hora depois que ele soube, eu falei com ele por dois minutos numa chamada de vide o e ele estava tão feliz, que parecia não acreditar que finalmente Deus iria realizar seu maior sonho: um menino na família.

Duas horas depois de saber do baby boy, ele morreu. Pode ser que a notícia de que seria avô de um menino o tenha feito se emocionar demais, ao ponto de ele ter um ataque do coração. Isso nos deixou mais tristes com o passar dos dias, mas depois de um tempo, eu me lembrei do que ele me disse: não importa como, a causa, a forma, a morte nos leva de volta ao lar.

Amém!




11 comentários:

Anônimo disse...

Lendo esse texto me fez relembrar muitos momentos. Foi através do pastor Edson que minha família conheceu à Deus. Ele sempre cuidou das suas ovelhas.E com certeza está melhor do que nós.Combateu o bom combate, completou a carreira e guardou a fé. E hoje descansa nós braços do Pai.

Anônimo disse...

Sem palavras para descrever minha emoção ao ler que vc descreveu exatamente td que eu queria, mas sabia como começar.
devo TD que sou a ele. eternamente ...

Anônimo disse...

Como eu lembrei da minha mãe, Flávia! Não importa como, voltamos para o lar… com outras palavras esse foi o ensinamento que minha mãe me deixou, “a última palavra vem de Deus”, foram essas as últimas palavras que ela me disse logo após ser decretada a sua morte pela oncologist. Mesmo sem conhecer posso afirmar que seu pai foi um “verdadeiro homem de Deus”, porque verdadeiro? Porque pouco vemos homens assim hoje em dia! Mesmo nos braços do Pai ele continua nos ensinando e edificando vidas com o legado que deixou.

Anônimo disse...

😭😭😭

Anônimo disse...

Que expressão mais linda de uma família maravilhosamente formada por Deus. Eu tenho motivos mil para ser muito grata ao Edson e Edna pelo acolhimento que tive em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Pelo aconchego no meio de vocês, do carinho que recebia, do conforto, gargalhadas e comidinha deliciosas. Gratidão, muita gratidão.

Anônimo disse...

Você sempre me faz chorar!!!

Erika Duarte disse...

Oh amiga que lindas palavras, me emocionei 😢. Com certeza seu pai se foi com orgulho da Familia linda e Cristã que ele construiu! Deus abençoe vcs.

Anônimo disse...

Até hoje eu estou sem chão, o pastor edson era um pai na fé, sempre atento a tudo, eu agradeço primeiramente Deus, e depois o pastor edson por te ensinado o evangelho, esta fazendo muita falta , toda semana agente se falava no messenger a noite, umas das palavras que é ele me disse três dias antes dele falecer é que a morte é a volta pra casa do pai eterno , e temos que esta preparado pra essa hora, aprendi muito com ele, hoje ele está descansando na glória, esta fazendo falta mais ele cumpriu a sua jornada aqui na terra de pregar o evangelho do nosso senhor Jesus Cristo

Anônimo disse...

😥😥😥saudades eternas de meu tio😥

Jonas anastacio disse...

Ele esta de volta no bracos do pai . Ele plantou a semente junto c minha prima monica Deus regou e um dia tambem estarei c meu tio querido , ficava td bobo quando diziam q eu parecia c ele como gostova .hj vejo q mt mais q aparencia ficou um legado que quero ter honra de cumprir se Deus permitir chegar a 1% do que meu tio foi ja to mais que no lucro . Edson anastacio , tio , exemplo , pastor e espelho p mim

Anônimo disse...

Sem palavras para descrever, texto lindo! Claro que chorarei até o final! Que Jesus conforte o coração da sua família! Bjinhos